Balzaquianas

A Autora

Balzacas do mundo, uni-vos!

Raramente me sinto representada em filmes e séries. 

Muitas vezes acho as personagens femininas clichês, obtusas ou caricaturais. Quando resolvo checar quem escreveu, é batata: alguém do sexo masculino. A representação reducionista dos arquétipos que, muitas vezes, os homens têm sobre nós não me convence.

 

Minha experiência como balzaquiana no mundo masculino

Arriscando-me a ser apedrejada em tempos onde todos fazem muito barulho por nada, penso que a cabeça da maioria dos machos da nossa espécie é mais objetiva e simples do que as nuances do cérebro (e as sutis emoções) das mulheres. 

Não é só um palpite pois falo com a experiência de quem trabalhou quase 20 anos como minoria absoluta numa grande indústria. Quando fui admitida, integrei os 5% de mulheres do total dos funcionários. A área técnica de minha especialização reduziu ainda mais nossa percentagem já que grande parte das que lá estavam trabalhavam em áreas administrativas. 

Tive muito tempo para fazer amigos fiéis, conviver, observar e refletir sobre a mente do, digamos, homem comum. Concluí que, de uma forma geral, é mais monofuncional e objetiva do que a nossa que é repleta de sutilezas, questões que se encadeiam e se sobrepõem. 

Somos muito sensíveis ao subtexto e às entrelinhas da vida e das relações. 

 

Minhas Referências 

Acho curioso como muitas das séries que geram interesse para os homens me são indiferentes. Algumas, independente do gênero, acho muito bobas! Claro que há diversas exceções como, por exemplo: Os Sopranos, GOT, Breaking Bad, Black Mirror, entre outros. Entretanto, conheço poucos – pensando bem, nenhum -, que valorize com a mesma empolgação que eu a poética “My Brilliant Friend”. A Amiga Genial é baseada nos romances da Tetralogia Napolitana da igualmente genial – Elena Ferrante.  Qualquer pessoa que já a leu, sabe que atrás do pseudônimo há uma mulher.  

Tenho a impressão que o espectador masculino tem uma interpretação mais “a grosso modo” das coisas e nem sempre consegue perceber o que está rolando.  Aliás, na vida real também, e há inúmeros casos dos que são ludibriados por mulheres até menos inteligentes do que eles. Na ficção são iludidos também por algoritmos.  Veja o caso do filme Ela (Her) de Spike Jonze. Aliás, tem uma cena ótima na série sueca Real Humans (Äkta människor) onde uma “Hubot” (Human Robot) se disfarça, se infiltra e depois aciona sua inteligência artificial para aprender “o que os homens gostam”.  Isso com o objetivo de conquistar o trouxa, quer dizer, o homem comum.  

O fato é que a mulher tem malícia e aprende a manipular desde a infância. Desde a pré-história vivíamos confabulando nas cavernas para, em caso de morte, alguém se dispor a assumir nossa cria; tínhamos que saber em quem confiar. Enfim, desenvolvemos essa habilidade, hoje inerente, e usamos nossas armas para influenciar.  Quem foi entusiasta do seriado Roma como eu e conhece Atia e Servilia, sabe do que eu estou falando.

Ok, talvez eu também me apaixonasse por uma voz que me conhecesse e pudesse me dizer o que eu preciso ouvir na hora certa. Melhor ainda seria um androide que poderia até satisfazer minha luxúria sem problemas colaterais. Entretanto, meu cérebro feminino não teria a ingenuidade de acreditar que o algoritmo me ama e menos ainda sofrer por ciúmes – como o Theodore quando descobre por quantos “está sendo traído pela Samantha”. Achei hilário tamanha ingenuidade.

 

Balzac & outros balzaquianos

É compreensível que na dramaturgia criada por homens fiquemos meio autômatas. Obviamente existem exceções nesse mundo ― homens que têm uma sensibilidade intensa (feminina?) e conseguem expressá-la com maestria e sutileza como, por exemplo, Honoré de Balzac. 

Para não ser injusta, destaco dois showrunners que sabem retratar o sexo feminino com maestria e sensibilidade. Sir Julien Fellowes, por exemplo, é um gênio e me espanta que ele tenha escrito Downton Abbey sozinho com colaboração feminina para apenas um episódio dos 52 da série. Matthew Weiner deu um show nas personagens femininas em The Romanoffs — todas consistentes e interessantes. Senti muita alegria por ver mulheres tão bem representadas.

Há os que dizem que Balzac teria sido pansexual, que sua empatia intensa seria tanto com homens quanto com mulheres. Diz-se até que sua forma de descrever alguns animais são de uma sensualidade e volúpia exageradas. Enfim, o que importa o sexo dos gênios?  

Para showrunner que não é balzaquiano, há que buscar a colaboração da diversidade de gênero senão o resultado fica chapado, falso, inverossímil. Eu tenho certeza que a Carmela Soprano só existiu porque havia balzaquianas naquele writers room

 

A exuberante personalidade de Honoré, que também contagia e inflama seus personagens, é dotada, como disse Baudelaire, de um ardor vital. 

 

Não é de admirar que todos os personagens sejam tão intrigantes e complexos como seu criador e suas vidas igualmente loucas e intensas.  

Além disso, ele possuía super-poderes ― como um “X-Balzac”, ele tem memória fotográfica prodigiosa (conseguia descrever detalhes das portas de Paris e do interior dos ambientes), empatia “sinestésica” com a humanidade (ele dizia que quando perambulava pela cidade incógnito entre as pessoas, sentia fisicamente as sensações que elas tinham) e, capacidade de aprendizado e repertório inesgotável (só lendo pra entender, o homem era um Google!). Achou pouco? Então imagine essa mente turbinada com um smartphone e com a tecnologia que ainda vem por aí. E não para por aí. Além de ter como estimulante o café ― Balzac buscava fornecedores em Paris para comprar grãos especiais e fazia sua própria mistura moendo-os e preparando diversas receitas de infusões ―, que ele usou até o final da vida, o novo Balzac dispõe de coisas sintéticas poderosas e até de nanotecnologia para estimular sua criação.

 

A quimera sorri, exibe seu semblante feminino, e distende as asas

A ideia de Balzaquianas foi uma consequência natural. Quando me dei conta, estava apegada aos personagens que existiram e os inventados no mundo balzaquiano, e ansiosa por descobrir seus destinos exatamente como numa série de TV. Então pensei: como não aproveitar tantos enredos universais que já estão explorados em sua intimidade em A Comédia Humana? Plots que permanecem atualíssimos, pois o coração das pessoas não evolui como a tecnologia.

Para mim, Balzac é o precursor dos atuais showrunners. Sua ideia de retratar a sociedade em sua diversidade, iluminando da elite aos cortiços; a invenção do retorno dos personagens (“le retour des personnages” iniciado em o Pai Goriot), gente que desliza entre seus romances em várias fases da vida em referências cruzadas (É inacreditável como ele conseguia lembrar dessa multidão sem o auxílio da tecnologia ou uma lista/planilha em papel), diferentemente dos folhetins da época que seguiam o mesmo herói em diversas aventuras. Ainda criou a técnica da iluminação retrospectiva (“l’éclairaige retrospectif” como nomeou Proust) onde você é apresentado ao personagem e depois conhece seu passado que ajuda a explicá-lo, o flashback.

 

“O amor é como o vento, nunca sabemos de onde ele vem.”

Balzac

 

Fui atrás de conhecer o homem e dediquei os últimos 8 anos (pouquíssimo tempo considerando a extensão da obra e a intensidade da vida) a ler, a buscar, a estudar e, em todas as oportunidades, visitar os locais por onde Balzac passou. Descobri então que o artista genial é apenas uma face de quem viveu 51 anos a mil. Estudioso, dono de um conhecimento extraordinário, ele tem a mente em chamas e a sensualidade em brasa. O generoso Balzac amou loucamente, seduziu, escreveu freneticamente (com pena de ganso e chegando a trabalhar 18 horas/dia!), empreendeu negócios comerciais que não prosperaram sob sua administração (felizmente, pois teriam nos privado de sua obra literária), viajou pelo mundo e colheu glórias que no entanto não foram suficientes para pagar suas dívidas. 

Sua jornada foi de luta, eventos fabulosos e muitos reveses mas, como um herói, ele foi resiliente, e com obsessão e paixão nos presenteou com seu legado. É impossível descobrir como Balzac arranjou tempo para criar e viver intensamente como fez.

Quem pensa que o feminismo é coisa recente e é forte para encarar a literatura do século XIX, recomendo ler o visionário Balzac. Ele era um, que hoje se chama e descobri recentemente, “protofeminista”. Gentil, ele respeitava e venerava as mulheres, diferentemente de inúmeros homens-artistas que na vida real (e até hoje!) subjugam suas mulheres à seu ego.

 

Nunca é tarde para amar Balzac que, aliás, sempre amou mulheres maduras… Como resistir ao charme do passional e exagerado Balzac?  

O Universo Balzaquiano me envolveu assim como abduziu tantos outros como Oscar Wilde cujas palavras espelham meu sentimento. Quanto mais mergulho, mais encantada fico e penso que seria terrível privar meus contemporâneos desse mundo singular e mirabolante, mantendo-o congelado no passado e restrito a um pequeno círculo de admiradores.

Provavelmente pelo fato de ser brasileira não desenvolvi a reverência de seus conterrâneos franceses e tomei a liberdade de transportar a biografia e a obra de Balzac para nossos dias. 

Meu objetivo é criar um entretenimento de qualidade, inteligente e diferente das fórmulas manjadas das produções audiovisuais. Quero que as pessoas desfrutem e, a medida que os personagens se revelem, venham a amá-los como Honoré e eu os amamos. Quero que os espectadores venham a descobrir, por exemplo, que a ingênua adolescente Coralie é corajosa e generosa, e que a mesquinha  Madame Vauquer é uma figuraça hilária.  

Melhor do que ninguém, Balzac exprime meus próprios desejos sobre Balzaquianas num trecho do prefácio de A Comédia Humana:

“A ideia primeira de A Comédia Humana foi para mim, a princípio, como que um sonho, como um desses projetos impossíveis que se acariciam e se deixam voar; uma quimera que sorri, que exibe seu semblante feminino e logo em seguida distende as asas, subindo para um céu fantástico. Mas a quimera, como tantas quimeras, transforma-se em realidade; tem suas imposições e suas tiranias, às quais se é forçado a ceder.”