Balzaquianas

Félicité des Touches

Félicité (40s) é um espírito livre de muitos talentos e hábitos espartanos. Órfã muito cedo, ela foi educada por um tutor competente, porém severo, que forjou seu caráter determinado e destemido. De uma beleza andrógina, ela é magra e musculosa, usa o cabelo curto à la garçonne e, em certas ocasiões, adota estilo masculino no vestuário.

Frequentadora dos colégios de ponta da elite, ela se manteve afastada da superficialidade mundana e do apelo de modismos e mergulhou nos estudos com curiosidade e perseverança. Reservada e competitiva, ela adora um desafio e assim colecionou méritos excepcionais, angariou um repertório intelectual substancial e desenvolveu diversas aptidões. Além de gostar de escrever, coisa que faz muito bem em mais de um idioma, ela é musicista, virtuosa no piano e campeã de equitação.

Por não ter parentes próximos, ela cultiva amizades duradouras e promove reuniões regulares em sua bela cobertura para grupos de intelectuais e artistas. Sua vida afetiva é escassa; por ser muito independente só teve romances fugazes. Aos 40 anos está habituada à liberdade e tem suas manias estratificadas. Por causa disso, acha difícil dividir a rotina com quem quer que seja. Félicité é meticulosamente limpa e organizada (quase TOC). Os amigos, que se deslumbram com seu luxo minimalista e displicente, ficam boquiabertos quando ela faz uma máquina de louça no fim da noite e, às vezes, encara uma pia de taças finas enquanto a empregada dorme (ou está de folga). Quando está estressada, ela gosta de colocar uma roupa na máquina de lavar. Félicité é generosa, preza a solidariedade e a justiça. Dinheiro nunca foi problema e ela o distribui com discrição e generosidade, sincera para quem gosta de ajudar. Quer que os outros também cresçam.

Um de seus xodós são livros antigos, de várias épocas e belas lombadas, preciosidades que compra por pequenas fortunas em suas inúmeras viagens pelo mundo. Outro xodó, um que a mantém cada vez mais “ligada” e lhe gera ansiedade crescente, são apps que interagem com seus gadgets hi-tech. Nas diversas atividades físicas como, por exemplo, Muay Thaï, ela usa dispositivos ligados à seu corpo para alimentar suas estatísticas minuciosas. Félicité mantém seu corpo forte, definido e flexível numa rotina rigorosa e estrita. Apesar da rotina do gasto físico intenso, ela sofre de insônia.

 


 

NA COMÉDIA HUMANA

No universo balzaquiano, Félicité des Touches é uma heroína classificada como “hermafrodita” — nem homem nem mulher — e foi inspirada na célebre romancista e amiga de Balzac, George Sand (pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin 1804-1876). Félicité é uma das protagonistas em Béatrix, cuja personalidade se constrói em oposição ao da personagem que dá nome ao livro, uma das mulheres “sem coração”. Ela aparece em diversas outras obras de A Comédia Humana.

Félicité na boca dos personagens no livro Béatrix:
Padre: “Aquela anfíbia, que não é nem homem nem mulher, que fuma como um hussardo, escreve como um jornalista (…)? ”
Calyste: “Camille (pseudônimo de Félicité no livro Béatrix) é artista, ela é genial, e leva uma dessas existências excepcionais que não devem ser julgadas como as existências comuns.”

Félicité por Balzac:
“Félicité criou-se sozinha, como um garoto. Lia o que lhe agradava ler. Conheceu portanto a vida em teorias e não teve nenhuma inocência de espírito, embora se conservasse virgem. Sua inteligência flutuou nas impurezas da ciência e seu coração permaneceu puro. Sua instrução, excitada pela paixão de leitura e servida por uma bela memória, tornou-se surpreendente. Por isso, aos 18 anos tinha o saber que os jovens de hoje deveriam ter antes de escrever. Essas leituras prodigiosas contiveram suas paixões, muito melhor do que a vida de convento, na qual se incendeia a imaginação das moças. Aquele cérebro, recheado de conhecimentos nem digeridos nem classificados, dominava aquele coração de criança. Essa depravação da inteligência (…) teria causado admiração a filosófos (…). O resultado foi no sentido inverso da causa. Félicité não tinha nenhum pendor para o mal, tudo concebia pelo pensamento (…). Os médicos prescreveram exercícios de equitação e as distrações da sociedade. Ela tornou-se ótima cavaleira e restabeleceu-se em poucos meses. (…)  Ao ver-se inferior a bonecas que tocavam piano e faziam-se interessantes, quis ser musicista; voltou-se para seu profundo retiro e pôs-se a estudar com obstinação (…). Desde então tornou-se uma musicista consumada. (…). Aos 21 anos, uma rapariga com tal força de vontade era igual a um homem de 30 anos. Seu espírito adquirira uma vastidão enorme, e hábitos de crítica permitiam-lhe julgar sensatamente os homens, as artes, as coisas e a política.”